terça-feira, 16 de agosto de 2011

DIÁRIO DE CANDELA - 20 de agosto, em Vísnar


Os pássaros noturnos estão calando. Logo vou ouvir os que anunciam a manhã. Não sei se o arrepio que me corta vem do vento fresco ou de mal de alma. Agora é a hora mais escura da noite.

Ontem, 19 de agosto de 1936, aconteceu uma tragédia tão dolorosa que deve ser marcada para sempre. Eles pensam que não houve testemunhas, mas o menino de Dolores estava no mato catando lenha, e abafou o grito de susto. Esperou que todos partissem, e correu a nos contar.

Minha carroça, velha, desgastada, mais uma sucessão de remendos de tábuas e lonas sobre quatro rodas gastas, mostra diferentes marcas. Do lado direito, logo abaixo dos arabescos pintados que enfeitam a carroça, distinguem-se diversos desenhos da roda da fortuna - 57 para ser exata.

A viagem de minha tribo começou na névoa de tempos perdidos; mas a carroça, minha casa, cama onde nasci, derramei meu sangue de virgem, pari, e vi morrerem meus dois filhos, essa tem data. Da mais desbotada a mais viva, são 57 marcas - 57 anos que a carroça roda estrada saltimbanca.

O circo corre nas veias de minha família. Minhas lembranças mais antigas são iluminadas por um círculo de tochas, no meio do qual meus pais dançavam e se arriscavam em números com facas. Antes dos olhos das gentes do pueblo conseguirem piscar, eu passava uma caneca de esmalte onde pingavam pesetas magras.

A morte do poeta me trouxe de volta os olhos de Javier. Os mesmos olhos escuros escorrendo amêndoa doce. Chegou a mim a terrível notícia de que meu amigo García Lorca foi assassinado.

Não que as outras cruzes, na lateral esquerda da carroça, não tenham peso. Cada uma das cinco cruzes antigas corresponde a meu pai, minha mãe, Javier, e meus dois anjos que não passaram dos três anos. Santa Sara que me perdoe, mas não sei se sofri tanto quanto hoje. Com a ponta do meu punhal, o mesmo que cortou meu cordão umbilical e os de meus filhos, entalhei uma cruz para Federico. Hoje, morri mais um pouco.

Se Deus e Santa Sara permitirem, logo completarei 50 anos. Já sinto a velhice acercar-se a cada légua de estrada. Hoje, especialmente, talvez pela tristeza da notícia, me sinto mais só e mais cansada. O fantasma de não continuar a tradição, o medo de não honrar a arte de meus pais gela as mãos e o coração. Sobre meus filhos de sangue, talvez eu tivesse mais autoridade. Jamais poderei deixar transparecer meu medo de ser abandonada. Mas, sem família, como poderei manter a carroça na estrada? Sem apresentar nosso espetáculo, o que me resta nessa vida?

Ah, Javier! O que houve com a mistura de nosso sangue que gerou crianças tão fracas? Meu Javier, como me faz falta tua guitarra, tuas coplas apaixonadas que tangiam meus nervos como dedos famintos! Outros dedos correram meu corpo depois da tua morte, mas sem tanta sabedoria.

Assim sozinha, tenho que contar com a estouvada Esmeralda e a pobre Dolores. Braços de homem, nenhuns. O velho, perto dos 75 anos, pouca força tem; o menino de Dolores, com menos de 12, é de pouca ajuda. Tenho muito medo de perder o pouco brilho que me resta e, sozinha, não conseguir mais tirar meu pão da arte.

Nunca precisei de muito. Não é da natureza do meu povo acumular mais do que a carroça pode carregar. Claro que gosto do brilho do ouro, mas não hesitei em me desfazer da maior parte das argolas, pulseiras e anéis para comprar comida, remendar a carroça e comprar outro cavalo depois que o fiel Lucero morreu de velhice. Agora, meu tesouro resume-se ao crucifixo de minha mãe, um par de brincos que pertenceram à mãe de meu pai e, claro, o anel de Javier, onde o vermelho do jaspe grita nosso amor tão cedo roubado. Uma queda de cavalo, uma cabeça partida, uma saudade que me dilacera as entranhas há quase trinta anos. Almas gêmeas prometidas uma à outra ainda na infância.

Meu grande amigo Federico era outra alma gêmea, se é que isso existe. Com a cabeça deitada em meu colo, como se eu fosse uma segunda mãe, pedia coplas e contos, tal qual um menino mimado. Meus dedos corriam as mechas escuras de seu cabelo sempre perfumado, e eu cantava para ele como para um filho de meu ventre. Escolhia as mais belas histórias para diverti-lo. Às vezes, a cadência de minha voz fazia a fada do sono baixar as pestanas daquele filho do meu coração. As negras pestanas não mais se movem.

Minha dor e minha revolta terão voz. Correndo o risco de nos comprometer, já, a partir de hoje, começo a ensaiar novo espetáculo. Se Federico jaz morto, seus versos falarão por ele. Com os parcos recursos da trupe, contaremos algumas histórias que García Lorca imaginou, inspirado pela cara amizade que tinha por meu povo e por mim.

Que venha a guarda civil! Se existem Deus, Santa Sara e o paraíso, lá esperam por mim os meus de sangue e o meu poeta... Olé!

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